Por
Léia Tavares, para a Revista Nova Consciência.
Atuando
por duas décadas no mercado de capitais, trabalhando como operadora
da BM&F (Bolsa de Mercadorias e Futuros), a economista Amyra El
Khalili já realizou transações gigantescas, negociando contratos e
títulos, além de moedas, ouro, petróleo, gado, café e outros
insumos. De ascendência palestina – seu pai veio refugiado do
Oriente Médio em 1960 – e, tendo conhecido a fundo as mazelas
sociais e os mecanismos perversos de exploração da natureza também
do homem pelo homem, Amyra sempre esteve engajada na luta pelos
direitos das minorias, pelo equilíbrio ambiental e, principalmente,
pela paz, razão pela qual já foi indicada para o Prêmio Bertha
Lutz 2007, e para o Prêmio Mil Mulheres, ao Nobel da Paz 2004.
Lidando diretamente com as grandes especulações internacionais e
conhecendo a fundo esse jogo em que tanto se ganha quanto se perde em
milhões num mesmo dia, ela passou a estudar a relação direta entre
as guerras e o mercado financeiro: “Percebia que a cada vez que o
petróleo subia, estourava uma guerra em algum lugar, o que,
consequentemente, tinha correlação direta com a morte de pessoas.
Quando os banqueiros estão ganhando dinheiro de um lado,
proporcionalmente estão morrendo milhares do outro”. Isso serviu
para aproximar Amyra das questões que envolvem o ambiente e o
desenvolvimento sustentável. Não compactuando com a frenética
atividade predadora do mercado financeiro, preferiu lançar-se a
novos desafios, dentre eles o de fazer valer a ética nas macro -
relações econômicas. Se havia quem estivesse lucrando com o
petróleo e as guerras, sua proposta foi a de desenvolver um modelo
econômico mais justo e solidário.
E
foi assim que ela, em 1996, fundou o Projeto BECE – Brazilian
Enviromental Commodities Exchange -, sigla em inglês para Bolsa
Brasileira de Commodities Ambientais, que tem como base o tripé
educação, informação e comunicação, formou-se então a Aliança
RECOs – Redes de Cooperação Comunitária Sem Fronteiras. O
projeto BECE busca estimular não apenas a produção de pequenos
agricultores, como também desenvolver atividades de valorização
cultural de pequenas comunidades. Amyra acredita que só por meio da
informação é que poderemos construir uma economia mais solidária,
respeitando-se as diferenças culturais, multirraciais e religiosas.
Mas para isso é preciso uma nova consciência no meio econômico.
Durante
duas décadas atuando no mercado financeiro, como você se
especializou na questão ambiental?
Estudando
o binômio água - energia e constatando que o grande problema do
Oriente Médio não era só petróleo, senão a escassez de água.
Foi por isso que me senti sensibilizada pelo sofrimento de tanta
gente. Entendi que estava diante de uma grave questão ambiental.
“Percebia que a cada vez que o petróleo subia, estourava uma
guerra em algum lugar, o que, consequentemente, tinha correlação
direta com a morte de pessoas. Ao mesmo tempo em que isso gerava em
mim um enorme mal-estar, junto dele aflorou uma consciência mais
ampla, que me levou a pensar: “Assim não é possível! Esse
sistema financeiro, responsável por tantas mortes, deveria estar
favorecendo a vida”. Quando os banqueiros estão ganhando dinheiro
de um lado, proporcionalmente estão morrendo milhares do outro. E há
uma lógica nessa relação; ela não é mera coincidência.
As
guerras no Oriente Médio estão diretamente ligadas à questão do
petróleo e da escassez de água. Na América Latina, quais são
nossos maiores problemas ambientais?
A
América Latina é abençoada por Deus. Encontramos em nosso país,
por exemplo, a maior biodiversidade do Planeta. Temos, inclusive,
água abundante e terras férteis, que os outros continentes já não
têm. Contudo, as mesmas preocupações que os meus irmãos árabes
têm com as guerras no Oriente Médio, poderão ser as nossas daqui a
alguns anos, justamente por conta da escassez da água. Costumo dizer
que água e petróleo são hoje a mesma moeda, e logo a água estará
ainda mais cara. Outro problema a ser tratado é o de nossa cultura
de servidão ao sistema financeiro internacional, essa aceitação
passiva de uma subserviência que nos torna sempre vítimas da usura
do capital estrangeiro, que só faz fomentar a corrupção endêmica
que infelizmente nos assola. Em Cochabamba, por exemplo, já houve
convulsão social por causa da água. Já no Uruguai foi necessária
uma reforma legislativa para que ela voltasse às mãos do governo e
da sociedade, pois estava sendo privatizada. Ora, a água é um
recurso natural de uso público chamado bem difuso; pertence, pois, a
todos e à Nação. A iniciativa privada não pode simplesmente
cercar uma bacia hidrográfica e dizer-se dona dela. Antes de tudo,
deve-se prover água suficiente para a agricultura, para os animais e
toda a população. Somente seu excedente poderia, em hipótese, ser
comercializado. A lei ambiental é clara nesse aspecto. E, além
disso, ainda há toda uma série de problemas hídricos que deve ser
sanada pelo Brasil a fora.
Poderia
exemplificar algum?
Temos
o Nordeste inteiro na seca e há regiões que têm água, onde esta,
por estar contaminada, não pode, ser consumida. Isso sem falar dos
problemas de saneamento básico, dos poluentes, dos dejetos, do
material inorgânico e dos resíduos químicos que vão parar nas
águas! Hoje os maiores contaminadores de águas no Brasil são as
próprias prefeituras. As indústrias, devido à enorme pressão
judicial, já começam a ter filtros. Diria que hoje são elas as que
menos poluem, salvo exceções. Mas ainda há muito dejeto sendo
jogado diretamente na água. Recentemente, por meio de nossas redes
de informação, a bióloga ambientalista Rose Dantas denunciou o
maior desastre ambiental no Rio Grande do Norte, a contaminação,
por resíduos químicos, de vários mangues que deságuam nos rios da
região. Resultado: 40 mil toneladas de peixes mortos, isso sem
contar as pessoas que se alimentaram deles e que morreram por
intoxicação, e do quanto isso tem afetado toda a rede de saneamento
básico do estado.
E
esses casos não são amplamente divulgados?
Na
grande mídia, não. Divulgamos por aqui, pelas nossas mídias
ambientais, mídias alternativas. Por isso é que ainda estou em pé,
pois acredito na importância da informação colocada de forma
honesta e transparente. É preciso torná-la ainda didática para que
a sociedade possa pensar melhor seus fatos. De novo me vem à mente a
palavra consciência; não adianta fugir dela, e gosto
particularmente da expressão nova consciência, porque não podemos
querer que as coisas continuem sendo feitas ou resolvidas com base
nos padrões ultrapassados das velhas meias verdades, por meio de
modelos cada vez mais desgastados. Qual a consciência dos que querem
ganhar dinheiro e lucrar a qualquer preço, atropelando, para isso,
tanto a ética quanto as pessoas envolvidas em seus negócios?
E
como podemos ter uma economia mais solidária?
As
negociações deveriam servir para fortalecer as comunidades
envolvidas no mercado, propiciando, assim, maior inclusão social às
minorias; mas, infelizmente, o que vemos são sempre os grandes
devorando os pequenos e desrespeitando suas liberdades e direitos.
Numa economia solidária, há maior compromisso entre as partes, que
primam, sobretudo, por lisura. Por exemplo, se eu tenho uma rede de
comércio e a aceito como parceira, devo, é claro, prestar-lhe
orientação e assistência. Diante das falhas, ouvimos as queixas e
conversamos, aprendemos juntos a lidar com nossas dificuldades e
estamos sempre repensando bilateralmente a nossa relação. Isso é
uma relação particular de economia solidária. Extrapolando o
exemplo para as redes internacionais de negociações, para acordos
comerciais firmados entre países, uma economia solidária é aquela
que sabe levar em conta as muitas diversidades, como a questão
religiosa, as diferentes culturas envolvidas, as situações
socioeconômicas de cada país, etc.... fatores determinantes de uma
relação de mútuo respeito, com a qual bem se pode promover a paz e
encontrar sempre saídas de conciliação diante dos impasses
econômicos. É perfeitamente possível associar afetividade a
relações econômicas. É basicamente o que propõe nosso projeto
BECE.
Fale
um pouco do projeto BECE.
O
BECE tem a função de projetar o que existe no mercado financeiro,
sua estrutura, seus modus operandi de comercialização e de
negociação contratuais, enfim, tudo o que se faz numa bolsa
convencional [Bovespa, BM&F], de modo a promover a inclusão
social de pequenos e médios produtores. Nesse sentido, nossa
experiência nas bolsas é bastante útil, e nos preocupamos em
desenvolver um programa voltado a uma nova economia financeira,
mediante a qual seja possível ajudar a sanear nosso país. Cunhamos
uma nova expressão: commodities ambientais, e assim começamos a
desenhar uma commodity não–convencional, como a soja, o milho, o
café, etc., voltadas somente para grandes mercados.
E
o que são commodities ambientais?
Muita
coisa pode se inserir neste conceito. Por exemplo, são commodities
ambientais as plantas medicinais, as árvores, os alimentos típicos,
os artigos artesanais... praticamente tudo aquilo que não vai parar
nas mãos das grandes indústrias, nem aquilo que se produz em escala
industrial. São artigos e insumos feitos por pequenos produtores. As
commodities têm de estar regulamentadas de acordo com um padrão de
mercado legal – para compra e venda interna ou até para exportação
-, de modo que não fiquem presas somente ao mercado informal. O
conceito de commodities compreende uma “mercadoria padronizada para
compra e venda”. Embora não sejam artigos produzidos em série,
devem estar padronizados dentro de determinado nível de qualidade e
de alguns critérios homogêneos.
Qual
a maior implicação da diferença entre as commodities convencionais
e as ambientais?
As
commodities convencionais geram altos impactos no meio ambiente. Elas
determinam monoculturas intensivas do solo, enormes escalas de
produção, mais tecnologia e menos mão-de-obra. Já com as
commodities ambientais ocorre o contrário: há diversidade da
produção, pequenos produtores se organizam em cooperativas e
desenvolvem produtos diferenciados, como frutas (cacau), plantas
medicinais. Tal produção, em menor escala, pode ser ambientalmente
manejada de modo sustentável; pode ser exportada ou vendida
internamente e passa a gerar empregos e renda para toda uma
população. Agindo assim, cada vez mais trazemos para a vida
econômica saudável pessoas que estariam alijadas do mercado,
submetidas ao exclusivo jogo de interesses dos grandes
investidores.
Poderia
nos dar um exemplo prático disso?
Claro!
Vejamos o que foi feito com a ayahuasca, bebida atrelada a toda uma
história religiosa e própria de algumas culturas indígenas. O que
fizeram com ela? “Comoditizaram-na”, isto é, ela foi patenteada
nos EUA. Agora, há uma luta jurídica internacional para a derrubada
dessa patente, ilegal, a meu ver, posto ser esta bebida um patrimônio
da cultura indígena. Quando “comoditizamos”, estamos trazendo
algo de uma relação cultural para o mercado. As commodities
ambientais são exatamente isso; mas, claro, não para sustentar os
interesses financeiros dos empresários ou de grupos lobistas e de
certos governos. As commodities visam a trazer benefícios para a
própria comunidade que as produz. Afinal, quem deveria ganhar
dinheiro com a comercialização da ayahuasca? Seria certo isso? Nem
as igrejas que se utilizam da planta como bebida sagrada querem obter
lucro algum com ela, ponto este que deveria ser respeitado. Idem em
relação às demais plantas medicinais indígenas, que não deveriam
estar sendo objeto nem de pirataria ambiental, nem de comercialização
por parte dos laboratórios farmacêuticos.
Qual
a importância da informação nesse processo?
Trabalhamos
com as comunidades, escorados sobre o tripé informação, educação
e comunicação. É nessa linha que caminha o projeto BECE. A
comercialização em bolsa não é necessariamente o nosso objetivo
final, senão o de implantar um novo modelo econômico para a América
Latina e o Caribe, onde a moeda seja a produção e não a
especulação financeira. Para isso, faz-se necessário que atuemos
junto às bases, com pessoas que não têm acesso à internet, que
não recebem fácil informação, posto que moram em áreas
afastadas, ou em locais onde há exclusão social. Nosso trabalho
consiste, ainda, em conscientizar essas populações para que não
sejam tolas presas nas mãos dos especuladores, que as levam a
assinar contratos absurdos de modo a melhor explorar suas riquezas e
matéria-prima. Quando chegamos nesses lugares e falamos ao indivíduo
comum, no sentido de melhor orientá-lo, aos poucos vamos inibindo a
ação predatória dos grandes especuladores, oportunistas. A única
forma de mudar esse modelo econômico deteriorado e disseminado pelo
mundo é a partir da ação em pequena escala. Para acabar com a
autofagia financeira, é preciso levar aos cidadãos comuns a
informação e a educação econômica de forma transparente e
isenta, para que cada um saiba melhor se defender e decidir seus
caminhos.
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